quarta-feira, 2 de junho de 2010

Artigos de jornal de e sobre Affonso Romano de Sant'Anna

Jornal do Brasil                              Idéias                               27/03/2004
Altos e Baixos de Affonso Romano: Um Pensador para a Literatura
Regina Zilberman, professora de literatura e autora de A Formação da Leitura no Brasil
Que fazer de Ezra Pound. Affonso Romano de Sant’Anna. Imago. 260 p., R$ 36
     Houve uma época em que a vanguarda podia se mostrar iconoclasta, demolindo mitos e cânones, afirmando um modo de ser fora dos parâmetros conhecidos e impondo uma percepção inusitada da arte. Agora, aparentemente, é a hora de sermos iconoclastas diante dos valores consolidados pela vanguarda. Esse é o posicionamento de Affonso Romano de Sant’Anna em Que fazer de Ezra Pound, coleção de ensaios recentemente publicada.
     O título do livro, que denomina igualmente o estudo de abertura, sugere de antemão que comportamento o autor adotará perante um dos totens mais sagrados da vanguarda do século 20 e, especialmente, do movimento concretista, que se auto-impôs a tarefa de levar avante a tocha da modernidade nas letras brasileiras. Mas é em “Aspectos psicossociais e antropológicos da vanguarda” que Affonso Romano de Sant’Anna examina numa perspectiva histórica o movimento artístico a que se refere, considerando-o datado e superado.
     Nada mais contrário ao projeto da própria vanguarda, que se colocou na dianteira de tudo, com a ambição de jamais perder esse posto. Sua aspiração, em certo sentido, era o de coincidir com o “fim da história”, se nos é permitida a apropriação do título do controverso livro de Francis Fukuyama. No entanto, os acontecimentos falaram mais alto, e a vanguarda ficou sendo a Carolina de Chico Buarque, a única que não viu “o tempo passar na janela”. Sant’Anna igualmente diagnostica as razões para esse paradoxo: crítica em relação aos demais movimentos, a vanguarda não soube praticar o mais sábio dos ensinamentos - a autocrítica, reivindicada pelo escritor enquanto processo fundamental e imprescindível à criação artística e à análise de seus produtos. É o que leva o autor a reclamar, dos “guerrilheiros da estética”, “uma autocrítica”, que “poderiam também exercitar como quem exercita a democracia no sistema artístico”.
     É com os óculos da crítica e da autocrítica que, no livro, examina, primeiramente, outros ângulos da vanguarda: no ensaio que dá título ao livro, “Que fazer de Ezra Pound”, desmitifica um dos paradigmas da modernidade, perguntando se aquele poeta foi efetivamente tão revolucionário quanto propugnaram alguns de seus seguidores, entre os quais os concretistas, liderados por Haroldo de Campos. Affonso vai mais adiante e encara, como um toureiro audacioso, um tabu usualmente evitado pelos admiradores de Pound: seu declarado apoio ao fascismo, que o fez adepto e divulgador das idéias de Mussolini. Recuperando o conservadorismo da poética de Pound, estabelece o vínculo possível entre suas posições políticas e os versos que elaborou. Ressalva em Pound apenas um aspecto: a atitude permanentemente questionadora, que permite a Affonso virar o feitiço contra o feiticeiro. Porque Pound valorizou o questionamento, Sant’Anna pode agora duvidar de sua arte e de suas idéias, bem como das de seus partidários.
     Haroldo de Campos, invocado indiretamente no primeiro ensaio, é a matéria central do segundo, sendo examinado seu posicionamento diante dos mestres modernistas, Mário e Oswald. Affonso está, aqui, especialmente interessado em entender por que Haroldo teve dificuldade em valorizar Mário, esquecendo a primazia desse em relação ao Oswald, a quem antecipou em vários aspectos. Também aqui Sant’Anna está sendo radicalmente crítico, desmontando com competência as teses de Haroldo, para indicar os equívocos do concretista, que rejeitou Mário de Andrade por fugir aos parâmetros que adotara para si mesmo.
     Se a crítica atravessa três estudos, a autocrítica aparece nos dois em que Affonso refere-se à própria obra: em “Canto e palavra”, revê seu primeiro livro de poemas para discutir a aporia que contrapõe letra e música no caso da criação poética, concluindo que, no texto lírico, nenhuma das duas predomina. Em “Poesia e comunicação audiovisual: depoimento”, recorda a experiência de, nos anos 80, ter escrito, sob encomenda e relativos a acontecimentos do dia, poemas para a televisão. Valorizando a oportunidade de unir dois modos tão diferentes de comunicação, o autor traça igualmente os limites que cada um deles impõe ao criador, fato que impede, de um lado, a rejeição do processo, de outro, o otimismo inconseqüente.
     Constituído de 15 ensaios, O que fazer de Ezra Pound contempla ainda outros temas, como a natureza do tempo na literatura ou da personagem multifacetada Arlequim. Examina igualmente o estilo de A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, e a carnavalização e o erotismo em romances de Jorge Amado, como A morte e a morte de Quincas Berro d’Água e Dona Flor e seus dois maridos. Adalgiza Nery, ficcionista que nem sempre recebeu a devida atenção dos historiadores da literatura brasileira, Ismael Nery e Drummond de Andrade são igualmente objeto do olhar de Affonso. E, se a vanguarda é assunto dos ensaios colocados no começo do livro, o barroco aparece ao final, no trabalho dedicado ao O valeroso Lucideno, poema do século 17.
     O que fazer de Ezra Pound mostra-se obra de espectro amplo, pois abre com a discussão da vanguarda e conclui com revisão e revalorização de um poema barroco luso-brasileiro, não suficientemente conhecido. Em todos os seus passos, está presente a crítica e a autocrítica, que fazem do autor, Affonso Romano de Sant’Anna, o importante pensador da literatura contemporânea no Brasil.
Resenha: Trator Sem Combustível
Guilherme Bueno, diretor da Divisão de Teoria e Pesquisa do Museu de Arte Contemporânea de Niterói e professor da Universidade Cândido Mendes
Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Affonso Romano de Sant’Anna. Vieira & Lent, 204 p., R$ 32.
     Desconstruir Duchamp, de Affonso Romano de Sant’Anna, reúne artigos publicados pelo escritor em sua coluna no jornal O Globo. O autor reivindica uma análise urgente da arte produzida desde a modernidade, revendo o que considera os mitos de um período de crise. Afirma que para a arte sair de seu impasse é necessário utilizar diversos canais de interlocução: filosofia, sociologia, antropologia, psicologia e mesmo o marketing. Daí ensaiar uma abordagem oposta ao que ele chama de pensamento único, revertendo a concepção histórica “modernista”, baseada em rupturas contínuas e sem elo com a tradição. Aponta em artistas como Duchamp, Pollock e Serra seus resultados, numa produção a qual associa os substantivos “perversão”, “farsa”, “vício” e similares.
     O fôlego limitado do volume é notado essencialmente pela ausência da análise. Privilegia a elaboração de máximas, conjurando a arte moderna e contemporânea e seus “responsáveis” pelo atual estado de “anomia ética e estética”, reiterado insistentemente. Revela-se nisso a pouca envergadura do texto: incompleto, unilateral e generalista em sua empreitada. Fica a pergunta: o autor realmente está “desconstruindo” algo ou somente requentando velhas e desusadas imprecações?
     Revisar a modernidade significa remontar sua complexidade e contradições, em vez de simplesmente querer “expurgá-la”. Ela não operou exclusivamente com a idéia de ruptura. A teoria de Greenberg exemplifica como o período moderno formulou sua idéia de continuidade. Um de seus desafios foi, aliás, refutar a acusação de quebra com o legado da história da arte, feita pelo pior reacionarismo. Esforço que redefiniu a idéia de tradição e sua absorção, demonstrada pelos debates entre artistas, historiadores e críticos na virada do século 19 para o 20 e, sobretudo, por volta dos anos 20 e 30.
      Imputar a incompreensibilidade à arte moderna ou contemporânea é outra observação, no mínimo, genérica, que tange a gratuidade. Por que Pollock seria menos inteligível que Bronzino ou Leonardo? Por não se reconhecer ali imediatamente um tema, uma narrativa? O que seria uma pintura... “fácil”? O que se “entende” em uma obra de arte e, mesmo no caso de um Bronzino, a quantas pessoas fora possível o acesso àquelas pinturas no momento de sua criação? A estratégia de Duchamp não existiu isoladamente, mas na ampla questão do espaço moderno, das transformações de uma concepção de real e, conseqüentemente, da própria prática artística, processo que passa pelo aforismo de Maurice Denis (“Um quadro, antes de ser um cavalo de guerra, uma mulher nua ou uma anedota qualquer - é essencialmente uma superfície plana coberta de cores...”) e pelas colagens cubistas. Esta transformação implicou na supressão de uma hipotética hierarquia de meios e no fim de uma visão restrita da arte como artesania. Richard Serra não precisa ser metalúrgico, o valor de sua obra não está associado a uma habilidade manual.
     As polêmicas do livro, senão superadas há pelo menos 40 anos, já foram resolvidas pela historiografia da arte. A polarização entre abstração e figuração, para ele tão opressiva, é datada, perdeu seu sentido nos anos 60, com a Pop Art. A interdisciplinaridade que o autor conclama também não é nova: já é corrente nos discursos pós-modernos desde os anos 60. A teoria da arte pós-moderna surge naqueles anos, usando recursos da lingüística, da psicanálise etc. justamente para refutar certas concepções modernas então prevalecentes, estruturadas em idéias como “linearidade”, “progresso” e “auto-reflexão”. Polemizando ora o legado, ora os limites destas, é por intermédio do pós-moderno que ressurge o interesse por artistas como Duchamp, então visto por muitos como secundário. Torna, além disso, inviável a repetição dos velhos modelos “formalistas”, “sociológicos”, “psicológicos”, que faziam da arte ilustração “documental”. Sequer a indignação com o termo “arte contemporânea”, justificada por sua origem comercial, é consistente. Maneirismo, barroco, impressionismo, cubismo não foram epítetos originalmente artificiais e pejorativos? A mesma lógica permeia a condenação do expressionismo abstrato, alegando-o mero produto de operações da CIA. Tal juízo de valor equivale renegar as Igrejas Barrocas atendo-se à procedência criminosa de seu ouro...
     Há outros equívocos em sua abordagem, como o uso de uma metodologia estilística (já questionada nos anos 50 por Meyer Schapiro e Giedion) e a confusão no manuseio de termos como moderno e contemporâneo, ilustrada ao se referir a Beuys como “moderno”. É irônico o autor declarar simpatia por instalações e performances sem se dar conta de estas práticas existirem graças ao legado duchampiano.
     Ao contrário da afirmação de um “vale tudo” na arte, este não existe, como o autor se trai ao dizer que “há tanta gente boa do lado de fora”. Logo, há critérios, restando saber se eles coincidem com a sua visão de arte, algo difícil de descobrir, já que ele jamais enuncia suas escolhas.
     Se Affonso Romano pretende levar adiante seu projeto teórico, é indispensável explicitar quem considera os grandes artistas. Ele diz “poupá-los” com seu silêncio, mas priva o público de discutir suas opções. Nem a época de Rafael nem a de Ingres deixou de produzir artistas menores; não seria diferente hoje. Não houve, desde Diderot e Baudelaire, salão ou bienal unânime. A lição de ambos, diferentes [da] do autor, foi ter a coragem de arriscar seus juízos e perscrutar a possível grandeza de seu tempo. A crítica sem objeto é discurso vazio; não elege valor, não ousa. Talvez sem saber, o livro repete as atitudes, expressões e preconceitos dos anos 30 e 40. Suas postulações genéricas - aplicáveis a qualquer época - evitam a objetividade da escolha. Com isso, seu intento permanecerá comodamente incompleto. Pior, jamais se submeterá a comprovação ou erro, optando vacilante por uma improdutividade rancorosa.
10/4/2004
Exemplo de Desleitura:
Autor Responde à Resenha do Livro Desconstruir Duchamp
Affonso Romano de Sant’Anna, escritor
     Reconheço que é difícil responder à resenha de Guilherme Bueno, publicada aqui no Idéias (27/03/2004) sobre meu livro Desconstruir Duchamp, por duas razões. Primeiro, porque é um texto “contra” um livro, no qual o crítico não vê nenhum valor. Por isto, é uma desleitura crítica. Em segundo lugar, meu constrangimento provém do fato de que, para responder-lhe, teria que repetir o que está escrito no livro e que ele não percebeu.
     Passando por cima dessas dificuldades, no entanto, devo esclarecer: não sou contra a arte contemporânea; não sou contra Duchamp; não estou analisando Duchamp isoladamente; não sou contra a abstração; não acho que a pop art seja um mero produto da CIA; não acho que a modernidade é só ruptura; não usei metodologia estilística. Enfim, sou analista da cultura e estou questionando fundamentos e não pessoas.
     Na abertura do meu livro tem uma frase de Duchamp que deveria ser levada mais a sério: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto de arte por sua beleza.” É paradoxal que os duchampianos produzam leituras equivocadas de Duchamp, que não entendam que ele é um signo duplo. Importante e marcante numa época, pode e deve, no entanto, ser reavaliado, ser “desconstruído”, para se mostrar, ao lado de suas virtudes, também as falácias de seu pensamento e de sua prática.
     Continuam a lê-lo de maneira plana, unívoca. Nada menos duchampiano que louvar Duchamp. Repito: a melhor homenagem que se pode fazer a um contestador de ontem, é contestá-lo hoje. Com competência, é claro. Diz o resenhista que “é por intermédio do pós-moderno que ressurge o interesse por artistas como Duchamp”. Este o problema. Essa pós-modernidade, essa vanguarda tardia, está mais para o pré-antigo. Requentou o “velho”, ao invés de desconstruí-lo. É urgente e fundamental repensar a arte dos últimos 150 anos sem medo e com outros instrumentos teóricos.
     No meu livro, abro caminho para operacionalizações críticas por intermédio de duas estratégias complementares. Uma análise estrutural que, detectando variantes da modernidade e pós-modernidade, estabeleça uma gramática, uma sintaxe desse discurso. Estudar, por exemplo: o efeito do deslocamento, a fragmentação, as mudanças de escala, os novos materiais, a ritualização, a interatividade, a repetição, o automatismo, o conceitual no lugar da obra e o sujeito no lugar do objeto. Feito este estudo interno do fenômeno, o lance complementar é estudar o epifenômeno, aquilo que circunda o “produto” apresentado como “obra de arte”. Para isto, convoco estratégias interdisciplinares de análise para se entender a questão do fetiche, da aura, da iconoclastia, da transgressão e de uma dezena de itens que são mais bem tratados por disciplinas não-estéticas e não-artísticas, exatamente porque a arte foi invadida por pessoas que se proclamam não-artistas. Hoje, a sociologia, o direito e o marketing, por exemplo, têm coisas mais pertinentes a nos dizer, diante de certas “apropriações” e de certas “celebridades”, que os convencionais cursos de história da arte. [Comentário do blogueiro: Outra verdade, já diria Bourdieu! Mas por q vc não cita sua “fonte”?]
     É imprescindível essa operação, porque na arte moderna e na contemporânea há uma falácia teórica e uma arrogância prática: ela se quer antiarte, não-arte, mas quer ocupar o espaço da arte. Não ousa dar-se outro nome porque sua identidade é feita daquilo que nega. Apregoa essa tolice - “o fim da arte” - porque não entende que a arte é, em si mesma, uma função do imaginário. Regimes totalitários também pregaram o fim da religião desconhecendo que a religião é, em si, uma função simbólica. Resultado, transformaram-se em religião, como a não-arte pretende ser arte.
     Esta é uma época em que os repetidores julgam estar dizendo coisas novas, e os que dizem coisas novas são acusados de serem repetidores, porque os ouvidos estão entupidos e os olhos não querem ver que o rei está nu.
     Enfim, àqueles que ao se intitularem de “contemporâneos” acham que estão tomando o trem de seu tempo, informamos que há vários trens saindo e passando simultaneamente em várias direções. A história é plurívoca, não caminha como flecha, como queriam os modernos, nem é uma flecha quebrada, sem direção, enlouquecida, como querem os pós-modernos. De resto, se querem autenticamente ser contemporâneos, inteirem-se das revisões da contemporaneidade incrementada a partir dos anos 90, pois a forma de ser contemporâneo num sentido mais radical é operar a crítica da contemporaneidade e não simplesmente endossar o “mal-estar” e rejubilar-se com a anomia ética e estética. [Comentário do blogueiro: Pode-se perceber q o Affonso “entende” o q fala. Mas o seu crítico tb – o q significa q ambos estão certos e qualquer discussão em torno da “verdade” de ambos é chover no molhado... O jeito q tem é aceitar a ambos (e a mais alguns tb) como as duas (ou duzentas) faces de uma mesma moeda!]
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Diário do Nordeste               Caderno 3             27/09/2004
A Arte no Momento da Revisão
Os textos já existiam, tendo sido publicados em 2002 no jornal O Globo, pelo escritor Affonso Romano de Sant’Anna. Ele foi um dos que se dispôs a discutir as vanguardas na década de 60, como fez o também escritor Ferreira Gullar. A novidade quanto aos textos está na publicação em livro, lançando polêmica e ressuscitando velhas explanações do escritor. A chegada no mercado de “Desconstruir Duchamp - arte na hora da revisão”, editado pela Vieira e Lent, tem causado uma verdadeira zoada entre artistas e estudiosos da história da arte. De passagem por Fortaleza, onde participou da 6ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, não foi diferente. Affonso Romano de Sant’Anna deixou muita gente agitada, ao propor uma revisão da arte no século 20. Em entrevista ao Caderno 3, já de volta ao Rio de Janeiro, Sant’Anna tentou pontuar as questões mais instigantes do livro e esclarecer o que, segundo ele, talvez tenha sido incompreendido pelos artistas.
Edma Cristina de Góis
Affonso Romano de Sant’Anna: "Os artistas autênticos não precisam do adjetivo 'contemporâneo' para aparecer"
     Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão é explosivo desde o nome. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna o título do seu último livro presta homenagem ao artista Marcel Duchamp, um questionador e crítico da melhor estirpe, a quem o escritor chama de “mestre contestador de ontem”. Sendo assim, a forma ideal de homenageá-lo hoje seria contestando-o. “A maneira correta de dialogar com Marcel Duchamp é demonstrar as falácias de sua práxis teórica. Descontruir Duchamp é, às avessas, uma forma de homenageá-lo”, explica-se.
     A obra propõe repensar a crítica da arte dentro da crítica da cultura, revisitando conceitos da modernidade e da pós-modernidade. Na visão de Sant’Anna, muitos dos ícones das correntes artísticas do século 20 são ou foram apropriados pelos artistas sem se ter a menor noção do que, de fato, querem dizer. Ou seja, muitos artistas se arvoram de modernos ou pós-modernos e contemporâneos sem se dar conta do que isso significa.
     O esdrúxulo ou aquilo que choca transformou-se em arte contemporânea. A pós-modernidade seria o passaporte para o artista ser incluído na história. Sob esses elementos, Affonso Romano de Sant’Anna lança nova discussão. “O mais importante é o debate gerado a partir do que eu penso”, disse. E ele, de acordo com o que pregoniza no livro, não tem medo da revisão, nem mesmo de sua obra.
     Em primeiro lugar, inevitavelmente, gostaria de colocar a crítica feita por uma série de artistas, que se opõem a sua análise, achando que o senhor crucificou a arte contemporânea e seus produtores. O senhor tem respondido, debatido com esse público?
     Os artistas autênticos, que não precisam do adjetivo “contemporâneo” para aparecer, estão agradecidos por eu ter levantado uma série de questões fundamentais para se reanalisar a arte de nosso tempo. Tenho sido chamado para debates em todo o país. Já dei uma série de aulas inaugurais sobre esse tema, até em escolas de música e comunicação. Todos querem debater as aporias da arte de nosso tempo, porque não suportam mais os mal-entendidos, ou levar gato por lebre. Quanto a um ou outro que se opõe, primeiro isto é democrático, faz parte do jogo. Mas é interessante explicitar o seguinte. Aos que se manifestaram por escrito, eu os respondi nos veículos que usaram ou com eles discuti nas conferências. Alguns que foram assistir, meio desconfiados, acabaram aplaudindo, tanto ai em Fortaleza quanto em outros lugares, porque o cara a cara desmistifica incompreensões. Mas outros preferem o silêncio, seja por não terem argumentos ou por acharem que são donos da verdade. Sim, há alguns que quiseram partir para agressão, mas aí já é uma atitude lamentavelmente fascista, de quem não tem mesmo argumentos. Eu não podia esperar que essa discussão fosse sempre pacifica. Pois esse questionamento mexe em interesses poderosos e abala o ego de muita gente.
     O senhor afirma que para a arte sair do impasse em que está precisa utilizar canais como outras áreas das ciências humanas e sociais. Quer dizer que essa interlocução não é feita ainda? A Pop Art não foi uma tentativa disso?
     Uma de minhas teses é esta. Não sou eu que estou dizendo que certas obras não são “obras de arte”. São certos autores mesmo, que dizem isto com orgulho e até arrogância. No momento em que certas pessoas dizem, explicitamente, que estão fazendo “não-arte”, esse produto que não pertence, portanto, ao espaço da “arte” tem que ser analisado de outros pontos de vista. Esses pontos de vista são mais eficazes para explicar esse “produto” do que os enfoques “artísticos” e “estéticos”. Mesmo porque pintores americanos e europeus, que são os mentores desse tipo de manifestação, dizem claramente que já não têm nada a ver com o “artístico” e o “estético”. É uma opção legítima deles. Mas por questão de coerência temos que analisá-los fora do campo artístico, que dizem abominar. A menos que haja contradição da parte deles. E há. Por que se estão fazendo “não-arte”, então porque querem ocupar o espaço do museu, da galeria e querem ser verbetes nos livros de “história da arte”? Há uma incoerência teórica e prática. Uma pessoa que se declara “não-médico” não deve exigir para entrar nas associações de médicos. Uma coisa é fazer medicina alternativa, outra é dizer que a medicina já acabou e qualquer coisa que eu tomar cura qualquer coisa. Há 40 anos leio e estudo textos teóricos e manifestos. Dei não sei quantos cursos sobre isto, participei das vanguardas e digo: é estarrecedor, em muitos casos, a fragilidade teórica do que dizem. Isto sem falar do resultado pífio de muitas dessas propostas.
     Por que “anomia estética e ética”?
     Anomia tem significados correlatos na lingüística, na sociologia, na psicologia. São estados de decomposição de um sistema, de confusão, de falta de capacidade de articulação, de produção orgânica de sentido. O que está aí é isso, tanto estética quanto eticamente. Essa sociedade das drogas e da violência, essa hipocrisia violenta do império americano, essa sociedade de consumo, essa fome de celebridade, essa troca de sujeitos por objetos, essa confusão entre o centro e a marginalidade. Isso que arriscadamente pode se chamar de desvalorização dos valores. Ou seja: do questionamento da hierarquia rígida e da necessidade saudável de revermos os valores que recebemos, passamos tresloucada e impotentemente a aceitar qualquer coisa no lugar de qualquer coisa. Veja esse livro de Baudrillard- “A transparência do mal”: ele vem reafirmar as minhas teses. E a cada dia descubro mais autores estrangeiros que estão na mesma linha. Esse processo de revisão da arte do século XX está em movimento no mundo todo. Fazer isto não tem nada de reacionário. É o modo natural de fazer as coisas avançarem e saírem os impasses.
     Li a crítica de um artista que dizia o seguinte: a estratégia de Duchamp não existiu isoladamente, mas na ampla questão do espaço moderno, das transformações de uma concepção de real e, consequentemente, da própria prática artística. Eu queria que o senhor comentasse essa alegação.
     Concordo com o que o artista falou. Essa é a minha tese também. Duchamp foi fundamental para a reformulação da visão da arte de seu tempo. Num certo momento ele foi um avanço. Mas, Duchamp tem sido lido como um signo simples, e ele é um signo duplo. Após ter proposto o que propôs, tornou-se vítima de suas propostas e aderiu triunfantemente ao sistema. Se na famosa exposição do “Armory show” em Nova York ele contestou a arte de seu tempo com o “urinol”, logo depois passou a comprar dezenas de urinóis e vendê-los a museus. É o feitiço contra o feiticeiro. Além disto, em artigos naquele livro e outros que publiquei depois e que vou recolher também em livro, demonstro que muitas das afirmações de Duchamp, são simples “boutades”, simples tiradas irônicas, não resistem à análise. Imagine que ele disse que não via o cinema como forma de arte. É possível? As pessoas acham que ele é intocável. Não é. Tinha um charme incrível, era esperto. Por isto, repito: a melhor homenagem que podemos fazer a Duchamp, se somos realmente duchampianos é contestá-lo hoje. Ele, se fosse honesto consigo mesmo, abominaria esses filhotes que ficam copiando o que ele fez como se estivessem pintando “naturezas mortas” na pós-modernidade. O meu livro “Desconstruir Duchamp” é mais duchampiano do que esses que o ficam repetindo por aí.
     Qual a sua avaliação sobre a mídia no processo de disseminar, esclarecer ou confundir o público a respeito da arte em geral?
     A mídia está naturalmente envolvida nisto. Claro que se pode dizer que ela é também vítima. Talvez sejam as duas coisas. Por isto ela tem que se submeter a uma auto-crítica. Os jornais estão aí abrindo espaço para qualquer coisa que seja “esquisita”, “extravagante”, “escandalosa”. O “escândalo” virou atributo “artístico”. Isto é tanto verdade, que não bastasse olhar a história da arte moderna e pós-moderna, em grande parte construída a partir do escândalo e da bizarrice, veja essa Bienal que está se inaugurando lá em São Paulo. Sabe o que diz um cartaz na entrada do prédio? “Bienal: a gente quer chocar você logo na entrada. Este ano a Bienal é gratuita”. Muito engraçadinho, é claro, o modo de anunciar que é grátis. Mas o que aparece é o inconsciente, é a ideologia subjacente, ou seja, ali o que primeiramente conta é “chocar”, logo de saída (ou entrada). E este o grande risco. Há grandes artistas que não estão querendo chocar ninguém, e no entanto estão fazendo coisas ótimas. Mas como a imprensa está interessada no “espetáculo” , no insólito, o coitado que esteja fazendo a obra prima do século ficará totalmente desconhecido, enquanto um exibido qualquer que resolva tirar a roupa ou fazer cocô na entrada da Bienal será notícia, e com isto vai poder vender sua obra. É o caso daquele Offili, que ficou famoso e rico, em Nova York, não por ser pintor, mas por ter pintado a Virgem com bosta de elefante.
     Qual o papel da crítica neste cenário de produção em baixa como o seu texto sugere?
     A critica praticamente desapareceu. Nos anos 50 e 60 existia nos grandes jornais uma equipe de críticos, alguns escreviam todos os dias. Os críticos se afastaram ou porque se aposentaram, ou porque ficaram enojados ou foram substituídos simplesmente por jornalistas. Hoje o que conta é a reportagem e não a crítica. Os jornais não investem no crítico, porque os jornais querem ser “revistas”, são para serem “vistos” e não para serem lidos. Com isto se reforça a cultura da superficialidade, do espetáculo, da falta de construção do raciocínio. E isto se dá também com a literatura e outros gêneros. São coisas da “sociedade de espetáculo”, que analiso. Por isto, repito: o que estou fazendo não é uma simples crítica às “artes plásticas”, mas uma análise da ideologia de nosso tempo onde as “artes” que se querem “não-artes” são um sintoma.
Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, de Affonso Romano de Sant’Anna. Vieira & Lent. 204 p. Preço: R$ 32.
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O Globo  -  Prosa&Verso, Affonso Romano de Sant’Anna   -  1/7/2005
Vida Literária: Ontem. E Hoje?
     Como todo bom livro, esse A vida literária no Brasil: 1900 (J. Olympio), de Brito Broca, pode ser lido em vários níveis. Tanto os que gostam de estorinhas e casos de escritores quanto os que estudam a formação da cultura nacional encontrarão aí dados para se divertirem e se informarem. Verão reconstituído o tempo do modernizante governo Rodrigues Alves, a ação de Pereira Passos redesenhando o urbanismo carioca. Vão saber de José do Patrocínio, abolicionista negro, que voltou da Europa trazendo o primeiro carro para o Brasil e nesse espantoso veículo desfilando airoso, até que Olavo Bilac, ao tentar dirigi-lo, destruiu-o num desastre na Rua da Passagem. Leremos aí que não é de hoje que a Biblioteca Nacional exibe a sua Bíblia de Guttemberg, pois quando Anatole France veio ao Brasil em 1909 levaram-no lá para reverenciar a obra. Terão os leitores elementos para entender a esterilidade criativa de Aluízio Azevedo que, tendo tido o sucesso com Casa de Pensão, O cortiço e vivendo de escrever folhetins, nunca mais conseguiu terminar obra literária alguma desde que ingressou na carreira diplomática. Vão os leitores também se informar dos escândalos em torno de algumas eleições na Academia Brasileira de Letras, quando, por exemplo, o jovem Mário de Alencar -- protegido de Machado de Assis e Rio Branco -- derrotou outros escritores mais conhecidos.
     Poderão saber quais eram os salões literários que existiam na cidade, tipo Laurinda Santos Lobo (lá em Santa Teresa); de Sampaio Araújo (na Voluntários da Pátria); do casal Azeredo (na Praia de Botafogo); de Araújo Viana (na Muda da Tijuca); de Coelho Neto (na Rua do Rozo), e de como os artistas se dividiam povoando confeitarias e cafés como Café do Rio, Café Paris, o Java, Café Papagaio, Café Globo, Confeitaria Colombo, Confeitaria Pascoal; ou então, como depois do expediente, já que eram em geral funcionários públicos, iam os escritores para as portas das livrarias Briguiet, Laemmert e Azevedo para fazer a “vida literária”.
     Através desse livro iremos conhecendo melhor os meandros das personalidades de escritores como Machado de Assis sentado numa cadeira para ele especialmente reservada na livraria Garnier, e ali colhendo homenagens dos áulicos, ou afirmações pouco lisonjeiras de Monteiro Lobato sobre a mistura de raças no Brasil. Mas além de saber como se organizaram as ondas de leitores em torno de Nietzsche, Tolstói, Ibsen e Oscar Wilde, iremos rever os dândis nas confeitarias com suas polainas, capas, chapéus desabados, monóculos e gravatas espalhafatosas. Conheceremos centenas de outros escritores que, para usar uma imagem da época, eram falenas que se queimavam girando em torno da chama da glória. Esses “outros”, que sem serem grandes, com suas obras menores fertilizaram o terreno literário e com suas vidas ansiosas em torno da glória fornecem elementos para uma sociologia da literatura e da cultura.
     Publicado originalmente em 1956, essa obra deveria ser de leitura obrigatória primeiramente para quem quisesse estudar letras ou recompor a história do cotidiano da cultura. Além de ser agradável leitura, reforçaria a idéia de que, ao contrário do que se afirmou nas últimas décadas, uma obra artística não é unicamente texto, mas texto e contexto. A arrogância objetivista de certa crítica quis jogar fora a biografia dos autores, neutralizar a história, a psicanálise e a sociologia como se o estilo e a estrutura de uma obra fossem algo fora do tempo e do espaço. Não é bem assim.
     Brito Broca tinha muita clareza do que estava fazendo: “Não precisarei insistir na distinção que estabeleço entre vida literária e literatura. Embora ambas se toquem e se confundam, por vezes há entre elas a diferença que vai da literatura estudada em termos de vida social para a literatura em termos de estilística. Aliás, essa distinção André Billy já fez na série que dirige na França ‘Histoire de la vie littéraire’ (Tallendier)”.
     O projeto de Brito Broca era fazer quatro volumes reconstituindo a “vida literária” em nosso país em diversas épocas. Os outros três seriam o período colonial e romântico, a fase naturalista e a vida no modernismo. Se houvesse desenvolvido seu projeto, essas obras constituiriam, ao lado dos sete volumes da “História da inteligência brasileira”, de Wilson Martins, uma fonte riquíssima para se entender o Brasil. Lamentavelmente Brito Broca morreu atropelado na madrugada de 20 de agosto, na altura da Rua Dois de Dezembro, no Flamengo, aos 58 anos de idade. Dele só há boas referências, embora seja, como o disse Francisco Assis Barbosa, “escritor sem biografia”.
     Tanta tese hoje surgindo por aí sobre assuntos inexpressivos ou repetindo consuetudes sobre meia dúzia de autores sempre viciosamente estudados, e eu pensando por que alguém não faz tese sobre Brito Broca e seu arqueológico trabalho. Por que não surge alguém enfrentando esse enorme e belo desafio que seria escrever a “vida literária”, por exemplo, em torno do modernismo, ampliando assim algumas trilhas de Mário da Silva Brito e corrigindo o viés exageradamente paulista da questão. Como seria interessante se reconstruir a vida literária em torno dos anos 50 e 60, quando ocorreu a maturidade da crônica, o surto das neovanguardas, quando as artes em geral passaram por formidável transformação no período de JK, quando houve a modernização dos jornais e revistas, a televisão começou a surgir, a universidade a ter um papel maior na vida literária e vivemos crises políticas e sociais perturbadoras; enfim, como seria essa vida literária e cultural em 2000 ou hoje, 2005, nessa nova passagem de século?
     Quem escreveria tal epopéia ou farsa ou epigrama? Quem teria uma escrita a mais isenta possível, capaz de olhar de múltiplos ângulos rompendo com a visão estreita dos que querem conformar a História ao seu ponto de vista, à sua regionalidade, operando pela exclusão arrogante quando se deve tentar entender o todo e as partes?
* * *
Diário do Nordeste             Caderno 3             10/1/2005
Polêmica: Affonso Romano desconstrói Duchamp
Affonso Romano de Sant’Anna, especial para o Caderno 3
     Em 2004, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna causou polêmica na 6a Bienal Internacional do Livro do Ceará ao propor uma revisão da obra de arte do século XX, em seu livro Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, o título do seu último livro presta homenagem ao artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), um questionador e crítico da melhor estirpe, a quem o escritor chama de “mestre contestador de ontem”. Sendo assim, a forma ideal de homenageá-lo hoje seria contestando-o. “A maneira correta de dialogar com Marcel Duchamp é demonstrar as falácias de sua práxis teórica. Descontruir Duchamp é, às avessas, uma forma de homenageá-lo”, explica-se.
     Em artigo para o Caderno 3, originalmente intitulado “Tudo o que você sempre quis saber sobre o urinol de Duchamp e ninguém nunca lhe contou”, o escritor retoma a discussão sobre a obra duchampiana, pegando como mote a notícia de que o urinol produzido por Marcel Duchamp é considerado uma das principais obras de arte do século XX. O Prêmio Turner, da Inglaterra, coloca o mictório a frente da “Guernica” de Picasso. Fato é que os dois artistas, Picasso e Duchamp são os mais expressivos nomes da arte do século XX. A importância de Picasso justifica-se pelo conjunto de obras. Já a de Duchamp, pela negação da própria noção moderna de obra de arte.
     O artista francês Marcel Duchamp foi uma das figuras mais influentes na arte moderna. Além de lançar o Dadá e o Surrealismo, ele inspirou diversos outros movimentos, do pop ao conceitualismo. Duchamp se tornou uma lenda sem, efetivamente, produzir muitas obras. Apesar de seu sucesso, Duchamp abandonou a pintura no auge da fama, mudando o conceito do que constitui a arte.
      As agências de notícias divulgaram nesses dias que o urinol, que Duchamp expôs em 1917, em Nova York, foi eleita a obra mais influente do século XX, mais que outras como a “Guernica” de Picasso. Muita gente se espantou, muita gente achou graça, muita gente não entendeu nada. Acho o prêmio merecido e, paradoxalmente, ele deixa Duchamp e o século XX numa incômoda situação.
     Tenho dito que se poderia escrever um longo ensaio ou livro intitulado: “Tudo o que você sempre quis saber sobre o urinol de Duchamp e ninguém nunca lhe contou”. Essa notícia acima incita ainda mais a que alguém enfrente essa tarefa. Como e por que aquele urinol chegou a ter este status em nossa cultura? Ou, o que houve com a nossa cultura, que fez com que o urinol de Duchamp seja considerado, pelo menos nessa pesquisa, a obra do século XX? As pessoas estão inquietas, querendo saber como devem encarar essa notícia.
     Há várias maneiras. Uma seria discutir, de uma maneira nova e ousada, o sentido da obra de Duchamp, vendo-a a partir de hoje, século XXI e não mais com a complacente neofilia do século XX, coisa que de alguma maneira empreendi no livro Desconstruir Duchamp (Editora Vieira & Lent). Outra maneira mais tópica de penetrar no assunto, é examinar o contexto em que essa notícia apareceu, pois o contexto é já um texto. Por exemplo, no site da UOL ela vem na seção “arte e diversão”. Essa duplicidade é informativa.
     Duchamp, que foi mais chargista que pintor, melhor humorista que pensador, gostaria disto. E talvez a notícia pudesse ser lida de trás para frente, ao se anotar duas entidades que patrocinam essa enquete. A primeira é a organização do Prêmio Turner, na Inglaterra, um prêmio que tem sido caracterizado por produzir escândalos, mais do que “obras de arte”. O que prepondera na escolha dos vitoriosos hoje é a capacidade de chocar e produzir notícias, que difundidas aumentam logo o preço das obras em pauta. Não esquecer que a Inglaterra é quem tem hoje o controle publicitário da arte contemporânea, desde que o maior publicitário inglês, Charles Saatchi, instalou em Londres sua grande galeria. Em segundo lugar, o patrocínio é (também) de um fabricante de gim. E ele deve estar muito feliz com o fato que as agências de notícia de todo o mundo veicularam o nome de sua marca, no que se chama de “mídia espontânea”. Atrás dessa “mídia espontânea”, interessada espertamente no espetáculo, no escândalo, no insólito, muitas empresas têm patrocinado “qualquer coisa” que dê mídia.
     Mas isto é apenas uma nota introdutória, e naquele livro que alguém um dia escreverá se poderia estudar melhor a relação entre mercadoria e arte, quantidade e qualidade, marketing e valor, dentro dessa coisa confusa a que chamamos de pós-modernidade. Consideremos, no entanto, o tal urinol. É inadiável que se faça a história arqueológica do urinol de Duchamp.
     Há alguns detalhes pouco conhecidos sobre esse urinol de parede de Duchamp. Sabe-se que Duchamp intitulou essa peça de “Fonte” e apresentou-a, de cabeça para baixo, na exposição de 1917, em Nova York, com o pseudônimo: R. Mutt. Duchamp fazia parte da direção daquele salão de vanguarda, mas preferiu apresentar “sua” obra sob pseudônimo. Estava testando o próprio comitê de que fazia parte. O regulamento dizia que não haveria júri nem censura, que qualquer um que pagasse seis dólares poderia expor o que quisesse. Pois o urinol foi rechaçado. Os outros organizadores do salão, mesmo sendo vanguardistas, alegaram que aquilo não era obra de arte.
     O fato é que, recusado, tendo ficado encostado em alguma parede, alguém achou que o urinol era um urinol e jogou-o fora. Então o urinol original desapareceu. Mas naquela recusa, Duchamp e seu marchand viram uma excelente oportunidade de discutir os limites da arte de nosso tempo. E o debate foi fomentado pelo próprio Duchamp e seu marchand Arensberg, que editaram um jornal chamado, sintomaticamente, “Blind man” (homem cego) decretando não apenas o fim da arte “retiniana”- a pintura, mas defendendo a idéia que, com o urinol desaparecido, o autor “criou um novo pensamento para o objeto”. A proposta duchampiana era simples e provocadora: um objeto deslocado de suas funções práticas e colocado num espaço artístico, assumia imediatamente o valor de obra de arte, pois a intencionalidade do criador é que contava. A provinciana Nova York de l917, ávida de ser moderna e vanguardista, pois o futurismo já acontecera em 1909 em Paris, transformou isto numa grande celeuma, logo exportada. Certas frases e conceitos viraram axiomas indiscutíveis. Frases como “é arte tudo o que alguém chama de arte” eram tão inovadoras e caíam tão bem no espírito moderno, que quem ousasse duvidar era logo taxado de herege, ou, mais grave ainda, não-moderno, antigo, reacionário, conservador. E diante da figura sedutora de Duchamp, ninguém ousou fazer uma análise das suas afirmativas. Ninguém atinou, nem estava teoricamente aparelhado para perceber uma coisa básica: Duchamp era um signo duplo. E como um extraordinário inovador e provocador, só pode ser entendido plenamente se considerarmos as suas duas faces e as suas contradições.
     No entanto, todo o século XX foi gasto em ver somente a face óbvia do inovador, daquele que deu uma sacudidela na história da arte. Mas será que Duchamp é só esse revolucionário ou seu gesto ambicioso para ser reavaliado deve ser enfocado de maneira teórica mais eficaz? O que a antropologia, a sociologia, a psicanálise, a lingüística, a lógica filosófica teriam a dizer sobre o “deslocamento metonímico” que ele provocou? (Naquele meu citado livro abro caminhos nessas direções).
     Vejamos. Embora o urinol tivesse desaparecido daquela exposição em Nova York, a idéia prosperou, pois na “arte conceitual”, a idéia pode ser mais importante que a coisa. Então, surge a primeira contradição por parte de Duchamp: quem estava contestando instituições e conceitos artísticos, sucumbiu econômica e artisticamente ao sistema. Ele começou a produzir cópias de seu urinol, a assiná-las para diversos museus para inseri-las no sistema artístico que condenara. Só em 1964 autenticou oito outras peças semelhantes, caindo na repetição que tantas vezes condenou. O anti-artista virou artista, a anti-arte, arte. O feitiço virou contra o feiticeiro. O contestador sucumbiu à cultura do mercado. Aquele que dizia que não gostava de repetir o que fazia, produziu em série suas repetições. Só em 1964 autenticou oito outras peças semelhantes, caindo na repetição que tantas vezes condenou. O anti-artista virou artista, a anti-arte, arte. O feitiço virou contra o feiticeiro. O contestador sucumbiu à cultura do mercado. E, no final da década de 90, a Tate Gallery de Londres comprou uma das cópias por quase um milhão de libras.
     Alguém poderia alegar, que poderiam comprar mais barato, bastava ir à fábrica de urinóis, mandar escrever ali R. Mutt e “Fountain”. Mas, paradoxalmente, os que querem dessacralizar, ressacralizam tudo, precisam da “assinatura”, da “marca” do artista, num movimento de fetichização, digno das mais arcaicas sociedades.
     A paradoxal sacralização do objeto dessacralizador seria confirmada ainda pela badalada artista americana Sherrie Levine, que produziu um urinol de bronze dourado. Ou seja, o urinol virou a Mona Lisa da modernidade. Não estranha a eleição que ocorreu agora e que ao premiar Duchamp cria-lhe um embaraço, porque o transforma em academia.
     O ícone duchampiano teve duas consequências: 1) inumeráveis pessoas se sentiram autorizadas a pegar qualquer objeto e a nomear isto como arte, sem se darem conta que ao se julgarem originais e vanguardistas estavam apenas refazendo algo não mais original. Como diria David Hockney com a autoridade de ser um dos mais importantes pintores da atualidade “é algo anti-duchampiano fazer e refazer Duchamp”. O detalhe que escapou a Hockney é que Duchamp foi o primeiro a cair na própria armadilha. Em segundo lugar, incontáveis artistas ficaram presos para sempre a esse ícone, como o cão ou cobra que morde o próprio rabo. Por exemplo, um estudante americano de arte viu jogado no lixo, lá no Alaska, um urinol semelhante ao de Duchamp; alugou um helicóptero e remeteu-o ao Tennessee de presente ao seu mestre Ronald Jones, que o expôs com dois textos, contraditórios ao lado. Um, do teórico George Dickie, dizia, espantosamente, que aquela peça “tem muitas qualidades a serem apreciadas- a superficie brilhante, por exemplo, tem qualidades que lembram Brancusi e Moore”. A essa alucinação teórica, contrapunha-se um texto do próprio Duchamp ao lado: “Eu joguei o urinol na cara deles como desafio e agora eles o admiram como objeto de arte por suas qualidades estéticas”.
     Mas está longe de parar a viciosa história em torno daquilo que psicanaliticamente se pode chamar de objeto traumático, do qual alguns artistas e teóricos não conseguem se livrar ou superá-lo teoricamente.
     Como uma dízima periódica, que se repete tediosamente, a imagem do urinol fixava-se em mentes pouco dadas a um raciocínio mais pessoal e original. Em 1993 em Nîmes (França) havia uma exposição com outra cópia do urinol de Duchamp, e segundo Nathalie Heinich, o objeto estava tão sacralizado que eles o limpavam e o guardavam com o mesmo carinho que se dedica à “Guernica”. No entanto, um artista chamado Pierre Pinoncelli desencadeou uma performance. Ele era pós-moderno, filhote de Duchamp. Preso a essa metáfora original, aproximou-se do urinou de Duchamp e jorrou ali a sua urina. Isto feito, declarou que ao urinar ali o urinol deixava de ser de Duchamp e passava a ser dele, pois esse é o preceito da arte conceitual, ele apropriou-se do urinol icônico. E justificava seu gesto com sutileza teórica: ao urinar no urinol fez com que o objeto voltasse à sua função original. Seria isto o ápice da carreira simbólica do urinol duchampiano. Mas ele não se satisfez com esse gesto artístico. A seguir, já que havia se apropriado esteticamente do urinol, sendo ele um objeto seu e não mais do governo ou do Duchamp, destruiu-o a marteladas. Desconstruiu Duchamp ao seu modo.
     Isto virou caso de polícia e o ministro da justiça francesa entrou na questão alegando que “houve a degradação voluntária do monumento ou objeto de utilidade pública” no valor de 300.000 francos. Aquele artista conceitualista, contra-argumentou que ele, como um autêntico duchampiano, exigia que o urinol não fosse restaurado, nem fosse tratado como objeto vandalizado, mas como nova obra de arte, que a ele agora pertencia. Enfim, nesse círculo vicioso, alegava que havia se apropriado da apropriação.
     Como se vê, é uma sequência de atos e pensamentos prisioneiros de uma mesma idéia, num beco sem saída. Reprodução da reprodução com pretensão à originalidade. Pastiche do pastiche. Por essas e por outras é que digo que enquanto não desatarmos o nó duchampiano não se sairá do sonambulismo teórico que aprisionou a arte na modernidade. Não é quebrando o urinol e ressacralizando-o a seguir que se desconstruirá a falácia duchampiana, que teve sua função histórica e hoje ficou perempta. É decompondo suas idéias, que têm sido seguidas como dogmas e servilmente ressacralizadas, que se abrirá outra vertente além do exausto século XX. Algumas afirmações teóricas de Duchamp não resistem à uma análise lógica e interdisciplinar. Duchamp, inteligentemente, produziu sofismas, mas perfeitamente questionáveis. Como disse Wittgenstein- “Compreendemos mal a linguagem que usamos, e por isso de forma enganosa, vivemos a formular as mesmas perguntas. A linguagem é a origem das confusões filosóficas”.
     A melhor maneira de descontruir Duchamp não é negar ou quebrar o seu urinol, é tomar o seu discurso, já que ele se quer um artista conceitual que usa a linguagem como arma, e na análise de seu discurso mostrar as suas falácias. E isto é possível desde que tiremos a venda dos olhos, deixemos de ser o “blind man”, que ele cultivou, e como o menino da lenda de Andersen digamos, com argumentos teóricos, que o rei está nu.
* * *
O Globo                                  Colunas                                  30/4/2005
Duchamp rides again
     Quem quiser, realmente, penetrar no enigma Marcel Duchamp deve (pelo menos) proceder a uma leitura atenta do primeiro capítulo das quase 600 páginas do recentemente traduzido “Duchamp, uma biografia”, de Calvin Tomkins (Ed. Cosac&Naify).
     Estou falando de leitura “atenta”, “crítica”, “vigilante”, e não o simples passar de olhos sobre as letras em busca de coisas consabidas, que nada acrescentam ao “já dito”. Esse primeiro capítulo é exemplar e fundamental. Nele Calvin Tomkins teve a ousadia de começar pelo mais difícil -- a análise da obra “O grande vidro”. Noutros capítulos vai tratar da infância, da formação de Duchamp, de sua relação com pintores e marchands, de seu amor pela brasileira Maria Martins, etc. Mas o primeiro é que é a pedra de toque. Ousado. Revelador.
     A primeira afirmativa de Tomkins é a de que essa obra de 2,74m de altura por 1,75m de largura “é grande demais para ser compreendida à primeira vista”. Portanto, o espectador já se sente “diminuído” diante dela. Acresce o fato de tal compreensão ser “prejudicada por más interpretações de todos os tipos”. O texto começa, então, a agregar argumentos que reafirmam o caráter enigmático da obra. Portanto, além de grande, ela é enigmática. O espectador está logo duplamente em inferioridade diante dela. Essa obra que, segundo Tomkins, “beira a farsa”, tem outro problema inicial, pois Duchamp “insistia em que não se tratava de um quadro”, embora em textos outros, contraditoriamente, diga que é uma “pintura”.
     Começa, então, uma série de “deslizamentos” de significados. Aumentando a imprecisão, Duchamp dá logo um golpe semântico: diz que seu quadro não sendo uma “pintura” é um “atraso”. Se o leitor mais exigente indagar o que é “atraso” terá como resposta algo que não esclarece, apenas aumenta o enigma, pois ele diz que está usando o termo “atraso” “de modo mais geral possível”, em “diferentes sentidos”, reunindo a “totalidade deles em sua carga de indecisão”. Entenderam? Enfim, não esclareceu, aumentou a imprecisão.
     Põe-se em movimento a comédia interpretativa. Tomkins, que admira Duchamp, reconhece: “No esforço para decifrar o mistério da palavra ‘atraso’, relacionaram-na, entre outras coisas, à teoria da duração de Henri Bergson, à prática medieval da alquimia e ao medo inconsciente que Duchamp tinha do incesto. Um duchampiano sugeriu que ela fosse lida como anagrama de ‘lad(e)y’, para que de ‘delay in glass’ resultasse ‘glass lady’”. Ou seja, intensifica-se o festival de aproximações em torno das “indecisas associações” da obra.
     Um dos fragmentos deixados na “Caixa verde” diz que o “atraso em vidro” pode ser também um “poema em prosa ou uma escarradeira de prata”. Ou seja, qualquer coisa pode ser qualquer coisa. O próprio biógrafo reconhece o lado “críptico”, “absurdo”, “auto-irônico” com “anagramas pseudo-científicos”, e que os textos sobre o “Vidro” não têm “nenhuma ordem específica”, que quando alguém olhar a obra não vai ver ali o que está no texto teórico, porque o autor deixou de realizar algumas partes do projeto.
     Os mal-entendidos continuam. Tomkins pega o título por extenso da obra “A noiva despida por seus celibatários, mesmo” e ironiza as tentativas de vários entusiastas de Duchamp para dar um sentido à palavra “mesmo”. Ele, intérprete, ironiza outros intérpretes: “a tribo não consegue resistir à tentação de sair em busca do homem nessas pistas, mas Duchamp sempre sustentou que seu curioso e pequeno advérbio não tinha absolutamente qualquer sentido, que ele nada mais era do que uma ‘brincadeira e uma poesia à sua moda’, que a palavra même veio a mim sem sequer me dar o trabalho de procurar por ela”.
     E assim segue o ensaio deslizando no nonsense, ora dizendo “o que acontece em seguida é magistralmente obscuro”; ou então “não ficou claro para mim — nem, acho eu, para ninguém mais — como todos esses elementos produzem um motor de combustão interna de dois tempos”.
     Muito sintomático. Um etimológico quiproquó (isto por aquilo). Tomkins ironiza os diversos tipos de análises dessa obra (como a de Octávio Paz), mas confessa que também não a está entendendo “mesmo”. E do não-sentido original de Duchamp mais os mal-entendidos dos intérpretes constrói-se o quase-sentido da obra.
     Reconhecendo que a obra não é lógica, reconhecendo que a obra não é estética, Tomkins acha que apenas pode ser percebida por um “estado mental que só pode ser descrito como extático”. Ou seja, de êxtase. Consumam-se, então, as virtudes místicas e mágicas da obra que vive da indecisão, da contradição, do non-sense e da voluptuosa imaginação de críticos “mariés” (casados) ou “celibataires” (solteiros) exercitando seu desejo artístico imaginário.
     Neste ponto gostaria de levantar algo crucial para se entender a arte do século passado: a noção de “êxito” e “fracasso”. Assim como Ezra Pound confessou ao final de sua vida que seu “Cantos” era um fracasso, o “Vidro” é o grande fracasso de Duchamp. E num ensaio maior pode-se desmonstrar que arte do seculo XX é feita em grande parte de “memoráveis fracassos” -- expressão que Virgina Woolf aplicou a Joyce. Fracassos que deveriam ter-nos ensinado algo. As pessoas deveriam entender que o êxito delas foi o seu fracasso, e não que o fracasso delas foi o seu êxito.
     Esforçando-se para entender Duchamp, Tolkins diz: “não devemos nos esquecer de que ninguém entende totalmente ‘O grande vidro’ (?) já foi tachada de obra-prima a embuste, e até hoje não existem parâmetros pelos quais possa ser julgada”.
     Mas será que não existem parâmetros para julgar essa obra? Existem. E em Desconstruir Duchamp (Viera & Lent) indiquei vários. Mas algumas pessoas continuam a abrir mão da inteligência crítica aceitando como parâmetro o não-parâmetro de Duchamp. Caem na armadilha, na rede, naufragram no discurso alheio e onde deveriam raciocinar, cultuam o falso enigma e o precário mistério.
     Pensando criticamente, pode-se desconstruir Duchamp e sair dos impasses da arte do século passado. Por exemplo, ele indagou afirmativamente: “Pode alguém fazer uma obra que não seja obra de arte?”.
     Claro que pode. Basta examinar sua obra.

Revelações sobre Quincas, o cearense

Quincas, em sua versão para o cinema, interpretado pelo ator Paulo José. Personagem da obra de Jorge Amado seria baseado em um cabo cearense, nascido em Sobral, nos anos 1920
Affonso Romano de Sant'Anna, especial para o Caderno 3

Affonso Romano de Sant'Anna recupera a descoberta de José Helder de Souza, de que o personagem de Jorge Amado seria baseado em um sobralense.
     Já que está sendo lançado esse filme sobre o Quincas Berro D'Água, no qual o Paulo José encarna o personagem ambíguo, que mesmo depois de morto continuou a fazer estripulias pelas ladeiras, bares e prostíbulos de Salvador, vejo-me compelido a trazer a público alguns fatos praticamente desconhecidos a respeito deste contraditório e fascinante personagem.
     Naquela novela escrita por Jorge Amado para a antiga revista Senhor (1959) pressupõe-se que o Quincas era um baiano. Pois, alto e bom som, venho lhes advertir, esqueçam disto, pois Quincas era cearense.
     Como assim? Vai retorquir o leitor de Jorge Amado completamente enleado pelo mundo do cacau de Ilhéus e Itabuna e pela mítica Salvador? É cearense, repito. E querem saber de outra coisa? A estória original não se passa nem no Pelourinho, mas aconteceu no Rio de Janeiro e outras cidades.
     E já que a vida e a ficção são cheias de surpresas vou ainda mais fundo desnudando as origens dessa genial e incrível novela: o verdadeiro nome de Quincas, não é Joaquim Soares da Cunha como solipsisticamente o disse o romancista baiano. O Quincas real tinha, aliás, um nome muito mais mítico, pois se chamava Plutarco, cabo Plutarco. E já que estou rasgando os véus da ficção e da realidade avanço mais: o nome do Quincas/ Plutarco era esse: Wilson Plutarco Rodrigues Lima e nasceu em 1920, em Sobral, Ceará.
     E agora?
     Jogar o livro fora? Processar Jorge Amado?
     Nada disto, agora é que a novela fica ainda mais interessante, porque estamos aprendendo uma lição não só sobre as origens de uma obra de arte, mas constatando a simbiose entre vida e literatura.
     E Jorge sempre esteve visceral e baianamente ligado à vida. Aquela narrativa originalmente já fantástica ele a ouviu, em 1958, no Ceará numa rodada de bebida e bate papos com amigos, quando ali foi receber o titulo de Doutor Honoris Causa da Universidade do Ceará.
     Estou pressentido que você está achando isto intrigante, mas nem por isto não vou contar o resto. Contei o máximo que pude num texto que acompanha a mais nova edição de A morte e a morte de Quincas Berro D'Água (Cia. das Letras). Mas o que fiz foi de certa forma alardear a descoberta, não minha, mas de José Helder de Sousa, que em 1982 publicou um opúsculo pouquíssimo conhecido: Cabo Plutarco, o Berro d´Água, pela imprensa da Universidade do Ceará. Ali, conta coisas interessantíssimas sobre a estória que Jorge ouviu de amigos numa espécie de boate sintomaticamente chamada "Maracangalha".
     As pessoas, considerando seus grandes dramas e amores vividos, costumam dizer: "minha vida daria um romance". Lamento decepcioná-las. Não daria. A vida em si não é um romance. Carece de um romancista para a transformar e fixá-la através de técnicas expressivas.
     E foi isto que Jorge Amado fez. Ele tinha um ouvido danado de afinado para ouvir e gravar estórias. Isto é igual ao compositor, que ouve coisas que ninguém está ouvindo ou transforma em partitura o que se perderia no espaço.
     Eu já havia antes escrito um ensaio sobre essa novela de Jorge que, aos interessados informo, está no livro: Que fazer de Ezra Pound (Imago). Analisava gostosamente a técnica da "carnavalização" aplicando teorias de M. Bakhtin. Essa novela tornava-se riquíssima através daquela análise. No entanto, diante desses novos fatos trazidos por José Helder e retrabalhados por mim, Quincas Berro d´Água tornou-se ainda mais fascinante.
     Quem quiser que confira. O fato é que Quincas não desapareceu num saveiro numa noite de tempestade na Bahia. Está enterrado no Cemitério do Caju no Rio, no canteiro 6059, e ainda agora recebi um e-mail de um de seus descendentes pronto para novos esclarecimentos.

Affonso Romano de Sant'Anna é poeta, crítico e ensaísta. Autor de livros como: Que país é este? (poemas) e Drummond, o Gauche no Tempo (crítica).

Fonte: Diário do Nordeste, de 2/6/2010, http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=794245

sábado, 29 de maio de 2010

No Ar, o Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea

Caros e Caras:

Acabo de receber a seguinte msg e repasso, para q vcs tb o acessem...
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Caros Colegas:


É com prazer que anunciamos a nova edição do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, constituída de textos de alunos de graduação e pós-graduação.


O endereço é: http://www.forumdeliteratura.com/

Abraços da equipe de edição.

Luciano Trigo e A Grande Feira, no DN

Direciono-os pr'uma matéria do jornal Diário do Nordeste (Fort.-CE), de hoje, 29 maio 2010, sobre o recém-lançado livro do jornalista Luciano Trigo, A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010), q contém "uma reflexão crítica sobre a produção artística atual e seus agentes mais importantes".

Apesar dos comentários de Luciano Trigo serem sobre artes plásticas (ou visuais) em geral, talvez se possa chegar a um parecer + ou menos - semelhante sobre a literatura de uns tempos pra cá... Ou será q não?

O link a matéria é: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=792390

Rachel de Queiroz e J. Olympio, n'O Povo (Fort.-CE) de 29/5/2010

Rachel 100 anos
Louvação do bom livreiro
   A publicação do catálogo da José Olímpio suscita esta crônica, datada de 23 de abril de 1949. Rachel louva a atuação incansável do livreiro, editor de sua obra e de tantos outros importantes nomes da literatura
Rachel de Queiroz
29 Maio 2010
   Nascida em Fortaleza, a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) é destaque nas páginas do O POVO por todo o ano. Em homenagem ao centenário da autora de O Quinze (1930), o jornal divide com seus leitores parte do acervo de cerca de duas mil crônicas.
                                                  *************
   Esta crônica que hoje vem comemorar a publicação do novo catálogo da Livraria José Olímpio Editora. Pode à primeira vista parecer que todos os que escrevemos a esse respeito estamos dando, talvez, uma importância demasiada ao que no fim de contas vem a ser um acontecimento rotineiro na vida comercial de uma grande editora. Acontece porém, que, para nós, os da literatura brasileira, esse catálogo não é apenas uma lista de vendas de produtos comerciais: é, antes de tudo, uma espécie de anúncio das nossas produções, o registro da nossa atividade de escritores brasileiros. Uma espécie de índice de toda a moderna literatura nacional. Pequenos a grandes, estreantes e veteranos, estamos todos ali, fora poucas exceções - e confesso que há exceções da maior importância - Manuel Bandeira, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, por exemplo; contudo creio que os dedos das mãos dariam para contá-las todas. E tirando-se essas exceções, que servem apenas para confirmar a regra, pode-se afirmar que toda a literatura brasileira, através dos seus nomes mais expressivos, aparece nos catálogos daquela casa. E pois quem quiser se informar acerca dessa literatura, que leia aquele catálogo.
   Não sei se todos dão ao livreiro José Olímpio o valor real que tem esse homem no mundo das letras. A sua intuição, a segurança dos seus julgamentos, o seu bom gosto, a sua imensa capacidade de ser amigo, a sua lealdade, a sua exemplar probidade como homem particular e como homem de negócios. Jamais permitiu que os seus sentimentos políticos ou religiosos, ou que as convivências comerciais da sua casa influissem em quantidade ínfima, sequer, no livre direito de expressão dos seus editados. Antes é ele o mais estrênuo defensor dessa liberdade, e creio que preferiria fechar as portas da editora a pedir a um dos seus autores que alterasse uma linha sequer num original por amor de algum interesse ou receio subalterno. O contrário é que acontece - e vê-se mais de uma vez o editor a estimular o autor tímido ou tíbio a correr os riscos do público, a depender apenas do julgamento do público, a considerar o público seu único juiz. Jamais deixou de se interessar pela edição de uma obra de arte de ciência por motivos que não se liguem diretamente ao mérito daquela obra - e basta a leitura do catálogo em questão para comprovarmos o democrático ecletismo que norteia a sua escolha de livros. E não se diga, porém, que tal catálogo se observa apenas entre autores nacionais, em cujo meio não há muito para escolher. A seleção de traduções, feita sob a direta responsabilidade da casa, põe na rua Santa Teresa d-Avila e Leon Trotski, a Imitação de Cristo e as Ilaisons Dangereuses, Catanova e Dostolevski - porque o que lhe interessa é a obra de arte e o seu valor intrínseco, e a indispensável contribuição para a cultura brasileira que representa a sua vulgarização em bom vernáculo.
   Outra virtude essencial do editor José Olímpio é o seu respeito pela dignidade do escritor - dignidade de profissional e dignidade de indivíduo. Sendo ele o grande animador, o grande difusor da moderna literatura brasileira, lançando constantemente nomes novos, ampliando o âmbito de expansão dos nomes feitos, jamais entretanto tomou ares de mecenas; jamais alegou em conversas particulares ou em entrevistas de imprensa os benefícios que fez, os sacrifícios que aceitou por amor da cultura. E jamais igualmente caiu no erro oposto - o de nos tratar como simples produtores da mercadoria que ele vende, sabendo, sempre estabelecer a essencial diferença que existe entre o trabalho manual e o labor intelectual.
   Falei na honestidade proverbial da Casa. Todos que, como nós, com ela transigimos praticamente desde a sua fundação, poderemos apresentar testemunho do que é essa honestidade. Nunca vimos alterada ou censurada em alguns dos nossos originais uma palavra, uma vírgula ou menos por amor de qualquer consideração imaginária de segurança ou conveniência.
   Ali, os cortes únicos que já nos sugeriram foram pelo sabedor Aduardo, nos erros de português...
   Nunca nos foi insinuado, por qualquer das pessoas da casa, esta ou aquela orientação para a obra que muitas vezes antes até de estar escrita já está vendida e paga, dependendo essa antecipação das necessidades da nossa bolsa...
   Nunca, por exemplo, nestes anos e anos de negócios, entre nós e a nossa editora foi escrito qualquer termo de contrato, pois nunca houve necessidade de documentos entre a casa e os seus editados para que seja respeitada a correção e a boa fé entre as duas partes contratantes. Contam-se por dezenas as traduções que já fizemos para eles, por eles foi editado ou reeditado tudo que temos produzido, e querido publicar nestes 18 anos de atividade literárias; e deixando ao arbítrio da casa a retribuição ao nosso trabalho, jamais tivemos que nos queixar por remuneração injusta, deficiente ou retardada.
   Jamais, absolutamente jamais, ouvimos uma queixa referente àquilo que em 90% dos casos é motivo de brigas entre editor e editado: o excesso de volumes tirados acima do número combinado para a edição; a casa desconhece praticamente a fiscalização dos autores, a rubrica autoral, a numeração de tiragem; é que essa fiscalização sempre foi desnecessária, - o nosso melhor fiscal é o nosso editor. E quando aqui digo o "editor", refiro-me não só à pessoa do dirigente da casa: refiro-me igualmente ao complexo de direção que ele criou, à sua equipe diretora dentro da qual se destaca trabalhador infatigável, animador das melhores iniciativas, grão-vizir daquele califado, o irmão e braço direito do chefe, Daniel Pereira.
   Foi assim que José Olímpio se fez o grande amigo dos seus editados; detrás da sua banca de trabalho, tratando dos seus negócios e dos nossos negócios. Não precisou ninguém lhe aparecer com apresentações importantes, recomendado por medalhões. Todos nós o desconhecimento igualmente quando o procuramos com o nosso pequeno livro, pedindo-lhe que o mandasse ler e, se possível, editar. Foi em relações de trabalho e de negócios que nos fizemos amigos, não em reuniões sociais; é transigindo conosco, negociando, trabalhando e obrigando-nos a trabalhar, cuidando do nosso patrimônio literário com muito mais ciúme do que cuida da herança dos seus filhos, que ele se tornou para nós todos um amigo indispensável e precioso. Que o afirme não apenas eu, que não sou nada, mas os grandes nomes das letras nacionais; que digam se estou mentindo José Lins do Rêgo, Gilberto Freyre, Otávio Tarquínio de Sousa, Augusto Meyer, Graciliano Ramos, Ciro dos Anjos, Amando Fontes, Genotino Amado, Otávio de Farias, R. Magalhães Júnior, Rubem Braga, Vivaldo Coaracy, Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda, A. Frederico Schmidt, Gastão Cruls, Pedro Nava, Agripino Grieco, José Geraldo Vieira, Herman Lima, Luís Jardim, Sérgio Buarque de Holanda, Américo Facó, Raul Lima, Álvaro Lins, Aníbal Machado, Valdemar Cavalcanti, Silva Melo, Padre Negromonte, Josué Montelo, Nélson Romero, nomeados todos neste catálogo, e outros nomes ilustres que nele não aparecem por culpa de obras esgotadas e por isso fora do mercado.
   Que o digam algumas das maiores mulheres da literatura brasileira - Lúcia Miguel Pereira, Carolina Nabuco, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcia Benedetti, Lia Corrêa Dutra, Maria Eugênia Celso.
   Quem vive de favor público, como nós, temos, por definição, muitos conhecidos, mas pouquíssimos amigos. Não é de admirar portanto que saibamos identificar os amigos no meio dos conhecidos e dentre os poucos escolher os melhores, dos quais este é dos mais sinceros e dos mais fiéis.
                                                  ************
A costura do tempo
   - Nesse dia de 23/4/1949, o escritor e teatrólogo português, Júlio Dantas, concedia entrevista ao O POVO, depois de 26 anos sem falar à imprensa.
   - Notícias vindas da China, afirmavam que as tropas comunistas, lideradas por Mao Tse-tung, tinham ocupado a cidade de Nanquim.
   - O poeta Manuel Bandeira contava a história de sua adolescência e do seu sofrimento ao adoecer de tuberculose aos 18 anos de idade, ficando entre a vida e a morte.
   - A Escola de Polícia do Rio de Janeiro diplomava os primeiros oficiais do Exército e da FAB, no curso contra a sabotagem e espionagem.
MULTIMÍDIA
   Veja os fac-símiles da página original e da capa do O POVO quando da publicação da crônica em http://www.opovo.com.br/.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Mais considerações e algumas perguntas

Entre o Brasil literário do romantismo através do livro de Ubiratan Machado e o Brasil dos sécs. XX e XXI do livro da Profa. Walnice Nogueira Galvão (As musas sob assédio: literatura e indústria cultural no Brasil): com qual desses dois trabalhos vc fica pra explicar a realidade socio-histórica e literária de nosso país? Por quê?

Vc poderia fazer uma comparação entre as visadas crítico-historiogáficas de um trabalho e do outro? Quais seriam e em q estariam baseadas ambas as visadas?

Vc acha, como parece achar o Ubiratan Machado, q (ainda) há (ou poderá haver) algo de "romantismo" -- no sentido "revolucionário" do termo -- na literatura brasileira dos sécs. XX e XXI?

Por q a "alta" literatura, ou melhor, o livro em geral, não chega absolutamente a todos os segmentos populacionais? Ou vc acha q a "alta" literatura tem chegado a todos eles de alguma outra forma, via outros media?

O q quer dizer "mercado literário"? Não seria isso outro nome pra "campo literário" como o definiu Pierre Bourdieu?

Por q ou por quem "(sobre)vive/rá" a literatura no séc. XXI, e sob quais circunstâncias/aperreios/saias justas?

Dê sua opinião, faça qtos comentários quiser, please!

Três pequenos comentários sobre a entrevista com Ubiratan Machado...

1) É claro q no séc. XIX não houve a tal "consolidação" do "mercado literário" nem no Brasil e nem em qualquer outro país latino-americano -- sobretudo os de fala hispana, q não foram "vítimas" (como foi o Brasil) da proibição de instalar e fazer funcionar casas impressoras durante o período colonial, i.e., os séculos XVI, XVII e XVIII. Rigorosamente falando, essa "consolidação" só começou a acontecer no Brasil de Monteiro Lobato em diante, e, assim mesmo, com muitas lacunas até os nossos dias -- talvez por causa do tamanho de nosso vasto território continental. As causas disso são várias e de profundos e inimagináveis recortes de cunho político, social, histórico etc.

2) Quem lê a entrevista com o Ubiratan Machado e crê piamente em suas palavras desconhece as realidades atual e histórica do país visto como um todo, pois, a meu ver, enxerga umas poucas árvores ao longe e não discerne a floresta. É como se o Brasil se resumisse ao centro de onde emana o Poder, e o país como um todo é bem maior e bem mais complexo q isso. Basta dizer q, durante o romantismo, a população brasileira era eminentemente analfabeta; os poucos q sabiam ler e escrever ou já estavam no Poder ou estavam lutando para dele fazer/tomar parte. Ao contrário dos países europeus mais desenvolvidos, no Brasil do século XIX ainda não havia instrução pública, ou seja, o Estado ainda não se responsabilizava pela educação formal pública -- nem mesmo no ambiente urbano.

3) A distância entre os mundos rural e urbano era muito acentuada. Durante o romantismo, na ausência de meios de comunicação mais modernos (q, de fato, só se fizeram presentes no Brasil como um todo a partir dos anos 1950 e, ainda assim, com muita lentidão), o ambiente rural, cercado por pequenas cidades, era (e, guardadas as proporções, ainda hoje é) apenas um simulacro do ambiente urbano, e assim continuou sendo até o séc. XX. Desta forma, duarante todo esse período, as pequenas cidades do interior apenas simulavam o (q julgavam ser o) "progresso" dos grandes centros urbanos, geralmente as capitais das províncias, depois estados. Pelo país afora, havia pelo menos um jornal impresso em cada uma das pequenas cidades do interior.